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Posts Tagged ‘marco tomazzoni’

texto de Marco Tomazzoni (@marcot_)

Eu não tenho lá muito boa memória. Nomes, rostos, datas e imagens inesquecíveis eventualmente se vão. Mas eu guardo com relativo frescor o dia em que o céu se abriu e eu passei a gostar de música, a encarar um disco como obra de arte e não só bater pezinho com o que saía do rádio. O dia em que eu passei a pensar, logo, existir.

Virei adolescente sem ter gosto definido. Meus pais, nascidos no início da década de 1940 no interior, desde pequenos trabalharam e nunca deram a mínima pra música. Um “generation gap” dos brabos. Tirando Balão Mágico, Topo Gigio e trilhas de novela, poucos LPs chegavam lá em casa. Sobrou, então, para o irmão mais velho.

Confesso que hoje não tenho muito o que agradecer. Por causa dele, por um bom tempo achei Jovem Pan e tecno do início dos anos 1990 bacanas – como perdoar isso? Vez que outra escutava por tabela algo minimamente interessante, tipo Depeche Mode e Dire Straits, mas no resto do tempo era só sorte mesmo, como o pop rock gaúcho – no inconsciente coletivo de qualquer um que morasse em Porto Alegre –, as atrações dos programas de auditório e as famigeradas reuniões dançantes, todos com importante papel na minha formação. A questão é que eu, pra ser sincero, também não dava muito bola pra isso. Naqueles dias de ouvidos livres e hormônios adormecidos, livros e histórias em quadrinhos pareciam muito mais atrativos.

As coisas começaram a mudar na virada para o Segundo Grau, o Ensino Médio de quem cresceu longe da década de oitenta. O pop mainstream da época passou a me interessar (U2, Madonna, Aerosmith), até porque instalamos uma antena UHF e, bem, a MTV brasileira vivia sua fase áurea. Meu irmão, o mesmo que dizia que Double You era legal pra caralho, resolveu investir seu dinheiro do estágio – lá em casa ninguém ganhava mesada – pra importar Definitely Maybe, do Oasis. O clipe de “Supersonic” tinha despertado o interesse dele, graças a Deus, e o único jeito de se ouvir um disco gringo naqueles tempos era pegar de um amigo ou pagar por isso, seja alugando o CD (sim, isso existia) ou encomendando numa loja de confiança.

Tive uma fase Oasis fortíssima. Sabia tudo de cor, do início ao fim, inclusive a entonação e pausas mínimas. Achava os Gallagher gênios, a pose justificada, a postura “bad boy” original (vergonha!). Passou, claro, mas aquele som repercute em mim até hoje – o disco continua ótimo – e abriu caminho para o que viria a seguir.

Meu colégio tinha uma prova de seleção difícil, por isso meus colegas não eram necessariamente os mais populares. Pelo contrário, o padrão era o estereótipo clássico de nerd: magrelos de óculos de lente grossa, gordos antissociais ou gênios em miniatura, do tipo que desde pequenos criavam jogos no computador quando tudo o que se tinha na frente era uma tela preta e um cursor piscante. Imaginem os papos no recreio.

Alguns fugiam à regra, um especialmente. Mais velho, o cara tinha sido expulso do Colégio Militar. Nunca soube por que, mas boa coisa não devia ser. Ouvi dizer que antes das aulas ele tinha ido acampar por uma semana num cânion perto de Santa Catarina levando na mochila uma barraca, um quilo de arroz e muita maconha. Naquela época, drogas eram o tabu máximo pra mim e quem usava qualquer uma, boa gente não era. Certo dia, apesar do receio, trocamos umas palavras na sala de aula e, sabe-se lá como, ele jogou uma cópia de Revolver na minha mão.

“One, two, three, four, one, two, three, four”. A contagem na abertura de “Taxman” marcou também o início de uma nova era pra mim. Guitarras passaram a me dizer alguma coisa, o piano também. Havia instrumentos de corda. Falsete. Cítaras. Trompa. Coros. Rocks. Baladas. Diversão. Gritos. A arte de se cantar gritando. GRITANDO. Lembrava Oasis, mas era muito mais. Muito mais viciante, bem acabado, intrincado, variado. Emocionante. Melhor.

Eu não sabia das inovações em estúdio, do conjunto da obra de Lennon/McCartney, da fama de um dos melhores álbuns de todos os tempos, quem era o Doctor Robert (apesar da famosa irmã) ou o amor de “Got to Get You Into My Life”, tampouco importava – era instintivo. Só sentia que aquilo era muito diferente, a começar pela capa, os quatro Beatles com olhos estranhos, gente saindo pelas orelhas e colagens bizarras.

Músicas para gostar de Revolver não faltam – falar de repertório parece besteira depois de quase 50 anos – e talvez por isso o impacto tenha sido tão grande. Não era só um disco esquisito, mas uma arma pop, feita para arrebatar multidões e, quem sabe, deixar alguém nalgum lugar do mundo coçando a cabeça. Um produto de qualidade para as massas. Arte em grande escala. União inédita pra mim e que provocou um efeito inesperado: pela primeira vez, me fez levar música a sério.

Aquele garoto passou a ler e pensar a respeito, a acessar a Internet (que naquela época era só texto), a comprar a revista Bizz, a bisbilhotar discotecas alheias, a fazer coletâneas. Não demorou muito para escrever e a opção pelo jornalismo, ainda mais para quem ansiava por também estudar cinema, foi natural. Olhar pra trás e ver que Revolver acabou sendo decisivo na escolha da minha profissão é quase chocante. Ser fã de Beatles é uma coisa, mas trabalhar em alguma coisa por culpa deles? Parece responsabilidade demais. No fim das contas, deve ter sido isso mesmo. Azar o deles. E meu, quem sabe.

Há alguns anos, num reencontro da turma, acho que agradeci àquele meu colega pelo empréstimo do CD. Acho – já disse que não confio na minha memória. Hoje, sabe-se lá por onde ele anda e, se não falei nada na ocasião, espero ainda ter oportunidade. Revolver não é meu álbum favorito dos Beatles – o Álbum Branco ocupa o posto –, mas foi ele quem me apresentou ao mundo. Não consigo pensar em um elogio melhor.

Marco Tomazzoni é gaúcho e atravessou a Oswaldo Aranha e entrou no Parque Farroupilha comigo. Entende tudo de cinema. É repórter do iG Cultura

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